terça-feira, 12 de novembro de 2013

Por Amor A Gil

POR AMOR A GIL1

Paulo Leminski

Por amor a Gil, contrariando meus hábitos eremíticos e notívagos, vou estar no auditório da Folha hoje, às cinco horas da tarde, participando da série de papos sobre MPB, parte dos festejos comemorativos dos vinte anos de vida artística (pública) de Gilberto Gil.
Na efeméride, pretendo apresentar um número especial que preparei, uma tradução dos sons da sanfona (primeiro instrumento que Gil praticou) para montagens "joyceanas" e de ideogramas concretistas (minha homenagem a São Paulo). Espero, dessa forma, agradar a gregos e baianos, granjeando, assim, simpatias, quiçá adesões, para o partido que decidi anunciar na ocasião, o coração partido.
Não estarei sozinho. Levo comigo minhas convicções democráticas e a Fratura Exposta, minha banda "regae-new wave", que fará um "happening" dedicado a John Cage, enquanto eu recito, de cor, a lista telefônica de São João Del Rey, em memória de Tancredo Neves.
Não contente com isso, planejo discutir, à luz do mais puro "marxismo-leninismo", a proposta do encontro, que é "um bonde chamado desbunde".2 Na ocasião vou levantar a discussão da oportunidade de estarmos ali debatendo um tema tão vago, quando podíamos estar, alegremente, participando da assembleia-geral de algumas das greves que hoje, em S. Paulo, já estão se transformando em verdadeiras atrações turísticas.
Eu vou entrar com as luzes todas apagadas. Vou acender um cigarro e, nesse momento, as luzes todas se acendem e iluminam a plateia, com um brilho cegante. A equipe da Rede Globo tem ordens para começar a filmar exatamente nesse ponto, iniciando por uma panorâmica do auditório, onde já se pode vislumbrar Fernado Henrique Cardoso, Christiane Torloni, Luis Melodia, d. Evaristo Arns, Lula, Gaiarsa, Maguila, você, você e você.
Na mesa, o público vai começar a identificar alguns dos seus ídolos.
Deste momento em diante, o roteiro é um pouco livre, liberdade que eu faço questão que seja dirigida por Zé Celso Martinez Corrêa.
Passado o frêmito inaugural, serenados os ânimos da massa enlouquecida, começa o verdadeiro espetáculo, misto de teatro "kabuki" e "missa negra", baile de formatura e decisão do campeonato carioca.
Desnecessário dizer que o Glauco vai estar lá, acompanhado pelo Geraldão e pela mãe (do Geraldão, não do Glauco, é claro).
A seguir, vai ser entregue ao poeta Antônio Risério o diploma do título de "Cidadão Honorário" de Salvador, uma bobagem, claro, já que Risério é de Salvador, mas o Zé Celso insistiu, e eu achei melhor não discutir Shakespeare com alguém que já tinha dirigido "O Rei da Vela".
Risério deverá chorar durante um minuto, dizer que não tem palavras para agradecer aquela homenagem e, comovido, passar o microfone para o outro Antônio, Bivar, que vai contar a história do desbunde, desde o paleolítico até a ilha de Wight, e apresentar sua teoria de que o "Homo Sapiens" já foi substituído pelo "Homo desbundans".
Quando o Bivar falar "é isso daí, bicho", entram os comerciais. Um grupo "punk" de Vila Mariana irrompe em cena, batendo uns nos outros e entoando palavras de ordem "Krishna". Rogério Duarte, o único de nós que arranha um pouco de sânscrito, vai começar a explicar o sentido da palavra "sat-cit-ananda", quando já se ouvem os relâmpagos dos Stones, em "Undercover of the Night", anunciando a entrada de Ezequiel Neves.
Nosso Zeca Jagger deverá levar meia hora explicando as razões que levaram o Cazuza a se afastar do Barão Vermelho, deixando ao Frejat a espinhosa tarefa de levar, sozinho, a "bandeira vermelha" do Barão até o primeiro lugar na lista do "hit parade".
Não há, realmente, o que a gente não faça por amor a Gil. Nesse exato instante, irrompe no recinto o Matinas Suzuki que, armado de uma espada samurai, tenta cortar o fio do microfone, no que será impedido por uma voz dizendo:
- Sem forma revolucionária, não há arte revolucionária.
Matinas hesita, olha em volta, e sai intempestivamente, deixando atrás de si um rastro de murmúrios.
Claro que vivemos em tempos "pós-tudo", de indeterminação pré-apocalíptica, "cageana", tudo sujeito aos arbítrios do "I-Ching".
Não quer dizer que as coisas vão se passar exatamente assim.
A arte moderna, vocês sabem, comporta uma dimensão muito grande de acaso, de improvisação, de criação momentânea.
No final, alguém oferecerá o microfone ao poeta Waly Salomão. Coisa perfeitamente dispensável, uma vez que o dito, como uma cimitarra, já está nas mãos do bardo arábico há mais de meia hora.
Quem tiver alguma coisa melhor para fazer, pode dizer abertamente, que a gente não liga. Nós já estamos acostumados com ingratidão.
Quem não tiver, pode aparecer.
O traje é esporte, a entrada é franca, a saída é pela esquerda, a vida é curta, o diálogo é fundamental, a praça é do povo, o céu é do condor, a reforma agrária vem aí, a censura acabou, a gente faz o que pode, a vitória é nossa, a noite é uma criança, a viagem é longa, a carne é fraca, o rei da brincadeira é José, o rei da confusão é João, Deus é mais.
Não vai ser um barato?

NOTAS (retiradas do anexo de dissertação de mestrado "Leminski lírico: um estudo sobre as canções do poeta Paulo", disponível em: http://tede.ufsc.br/teses/PLIT0561-D.pdf)

1 Publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 13 de novembro de 1985. Este texto, uma espécie de conto fantástico, tem seu pé na realidade. O evento ao qual Leminski se refere realmente aconteceu, foi o “Gil 20 Anos Luz”, em comemoração aos 20 anos da carreira do compositor baiano. Na programação consta um debate com participação de Leminski intitulado “Música de Massa – Brasil e Modernidade”, previsto para o dia 15 de novembro. O evento todo ia de 12 a 17 de novembro de 1985.
2 Título de um debate do evento. Entre os debatedores, Jorge Mautner e Tárik de Souza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá. Para comentários, use o nosso mural:
http://liricoleminski.blogspot.com.br/search/label/%5Bmural%5D.
Obrigado!